Participação de Rafael Domingos Oliveira na reportagem da Agência Brasil: Só com luta de negros foi possível abolir escravidão, diz especialista - publicado em 13 de maio de 2022.
Entrevista completa concedida ao canal:
Agência Brasil: Em qual contexto foi assinada a Abolição de 13 de Maio? Como contribuíram os movimentos abolicionistas e a resistência das pessoas escravizadas para que isso acontecesse?
Rafael Domingos Oliveira: A abolição formal da escravidão ocorreu com a promulgação da Lei 3.353, em 13 de maio de 1888. Do momento em que o projeto de lei foi apresentado à Câmara Geral até o dia da sua sanção, passaram-se apenas 5 dias. Mas o percurso histórico até ela foi muito mais longo e, se quisermos ser rigorosos, ele começou com a primeira pessoa a ser escravizada e que, certamente, tentou resistir de todas as formas à nova condição a que estava sendo submetida. Desde então, foram muitas as estratégias de resistência - individual e coletiva - que as populações escravizadas lançaram mão para conquistar sua liberdade. A verdade é que em fins do século XIX, o Brasil era um dos únicos países a manter a escravidão legalmente vigente (Cuba extinguiu a escravidão em 1886), e desde há muito se elaborava uma consciência antiescravista no mundo ocidental. A contribuição dos movimentos abolicionistas foi, sem dúvida, fundamental para isso. Outro fator foi a tensão constante causada pela violência da escravidão, tensão essa geralmente resumida no medo que a classe senhorial cultivava de que revoltas e rebeliões pudessem eclodir a qualquer momento. O medo, neste caso, revela uma consciência da própria violência promovida por esta classe, que simplesmente se projetava no "outro", no escravizado. Do ponto de vista econômico, o capitalismo atingiu um momento importante do seu desenvolvimento histórico, implicando o desaparecimento daquela que foi uma de suas grandes forças propulsoras: a exploração do trabalho escravo. As elites finalmente perceberam que não poderiam mais sustentar a situação e compactuaram em torno de um projeto que, acabando com a escravidão, manteve intactas as estruturas que impediam parte da população de acessar a cidadania plena. Por isso a lei que extinguiu uma instituição com mais de 300 anos, arraigada até o último fio de cabelo da vida social brasileira, tinha apenas 1 parágrafo. Um texto curto, simples, direto e que não dizia nada, embora dissesse tudo: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil". E nada mais. Esta foi a forma das classes dirigentes do país sequestrarem a história, como sempre fizeram, das mãos do povo. Assim, tentavam encerrar um capítulo fundamental da história do país sem se responsabilizar e, muito menos, sem oferecer nenhum tipo de apoio à população negra, cujo destino estava marcado por séculos de violência.
AB: Em que pontos a forma de abolição foi falha? Havia outras possibilidades que considerassem a reparação das vítimas do sistema escravista? Há exemplos em outras partes do mundo?
RDO: Ela foi falha de muitas formas, mas sobretudo no silêncio. É justamente o "silêncio" o que caracteriza, para muitos estudiosos, uma dimensão importante da branquitude, isto é, da identidade racial branca. Por isso, foi o silêncio da chamada "Lei Áurea" quanto à população negra - seus direitos e condições materiais de existência - que assegurou, entre outras coisas, os privilégios e vantagens das classes dominantes, beneficiárias do regime escravista e, na nova "sociedade livre", também detentoras dos meios de produção. Nesse sentido, é muito importante lembrar que, ao longo do século XIX, existiram muitos outros projetos para a abolição da escravidão que não vingaram. Um deles seria apresentado à Assembleia Constituinte de 1824 por José Bonifácio, e que continha além de uma proposta de abolição gradual, alguns artigos que discutiam a questão da cidadania das populações negras e indígenas no novo país independente. O projeto sequer pôde ser apresentado. Outro exemplo pode ser recuperado no projeto de redistribuição de terras, defendido por André Rebouças e Joaquim Nabuco, que poderia perfeitamente ser entendido hoje como reforma agrária. Estaria associado à emancipação da população escravizada. O projeto, como sabemos, nunca foi para frente e, até hoje, o Brasil é um dos únicos países de formação agroexportadora que nunca realizou a reforma agrária. Estes e outros projetos previam indenização aos egressos da escravidão, e não (apenas) aos senhores, como foi o caso da maior parte da legislação abolicionista da segunda metade do século XIX (Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários), que beneficiou os escravizadores. Em outros países que, assim como o Brasil, foram formados pela escravidão, existiram muitas modalidades de abolição. No caso do Estados Unidos podemos citar o período conhecido como Reconstrução, logo após o fim da guerra civil que colocou fim à escravidão. Naquele momento, existiram algumas tentativas legais de redistribuição de terras para a população negra, por exemplo. A maior parte dessas tentativas falhou em função do terrorismo racial que se radicalizou. Mas o fato é que, passado décadas do fim da escravidão, muitos países se depararam com a necessidade de implementar políticas de reparação histórica e equiparação. Isso nos faz pensar que é necessária uma abolição mais profunda, agora não mais da escravidão, mas uma abolição da desigualdade, do racismo. E não se faz isso sem reparar os danos (materiais e simbólicos) do passado. A "Lei Áurea" não foi suficiente: a nação brasileira precisa de uma nova e verdadeira abolição.
AB: Como a forma da Abolição de 13 de Maio faz parte da persistente desigualdade racial do Brasil?
RDO: É simples: com racismo, não há democracia. A abolição do 13 de maio extinguiu formalmente a escravidão, mas não fez nada para extinguir seu legado. E um de seus legados é o racismo, que representa um verdadeiro atraso civilizatório para todos nós, além de significar a morte e humilhação da maior parte da população brasileira. Para ser mais correto, o legado que nos aflige não é apenas o da escravidão; é, sobretudo, o legado da abolição no formato em que foi feita. É a abolição silenciosa e indiferente que constitui a nossa chaga aberta. Ela se tornou um componente poderoso para a superexploração do nosso povo no conjunto do capitalismo global. Junte a exploração do trabalho, a precarização e o racismo, e então temos o fosso de desigualdade que, infelizmente, nos define enquanto nação.
AB: Por que 13 de Maio é ainda, apesar das disputas, colocada como um marco a ser comemorado? 20 de Novembro é uma data que deveria substituir 13/5 em importância ou esses marcos podem ser estabelecidos de outras formas? Quais são as disputas que acontecem em torno dessas datas? Como elas se refletem no cotidiano das populações negras brasileiras?
RDO: É pouco lembrado, mas entre 1890 e 1930, o 13 de maio foi feriado nacional, considerado uma data cívica consagrada à comemoração da "fraternidade dos brasileiros". Como um país forjado no conflito entre escravizadores e escravizados, que perdurou por quase 400 anos, pode consagrar uma data como essa à fraternidade? Fraternidade, por definição, é um laço de parentesco entre irmãos. Não há nada mais oposto à escravidão e ao racismo do que a fraternidade. É evidente que esta data ainda carrega consigo um imaginário de passividade da população negra, por um lado, e, por outro, de benevolência da população branca. Por essa razão os movimentos negros vêm, há décadas, educando a sociedade brasileira (nos termos da professora Nilma Lino Gomes) quanto ao 20 de novembro e a consciência negra. A melhor resposta a essa pergunta quem pode dar é justamente os movimentos negros, pois são principalmente os movimentos sociais organizados que compreendem a importância de marcos como este para a luta política. Não se faz política numa democracia liberal sem marcos políticos. E essa disputa entre o 13 de maio e o 20 de novembro revela isso. Mas os próprios movimentos negros também reconhecem que, para além de uma data, a luta pela liberdade e pela emancipação humana não pode ocorrer em apenas um dia do ano. Ela é perene. E é, sobretudo, um compromisso a ser assumido por todos os brasileiros. Sem consciência do passado, não resolveremos os problemas do presente e jamais conseguiremos construir um futuro digno para todos. Enquanto houver racismo, seremos um país sem dignidade, sem auto respeito, sem valor moral. É isso que essa disputa representa.
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